Poesia Em Gotas
Tenho perguntado pras amizades se, em meio à quarentena, têm lido poesia. Sei que parece que o tempo não cabe no dia ou no peito e que poesia é alienante mas é justamente o contrário. Não é dar flores para os inimigos, é dar novas armas para os amigos. Poesia é ponta de lança. Se Ailton Krenak cita Drummond pra adiar o fim do mundo, quem sou eu pra ignorar Krenak ou Drummond? Isso tudo é pra mostrar como enche de ar e vida a poesia. Ouçam o que Marcella tem a dizer pois só uma poeta da sua grandeza poderia selecionar e recitar poemas como ela está fazendo, em pleno fim do mundo // Luti Guedes
Arts 1 évad 31 rész
Recortes do poema: Canto de companheiro em tempo de cuidados - Thiago de Mello
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3. évad 3. rész
Contigo, companheiro que chegaste,
desconhecido irmão de minha vida,
reparto esta esmeralda que retive
em meu peito no instante fugitivo
mas infinito em que se acaba a infância,
porque a esmeralda não se acaba nunca.
Reparto, companheiro, porque chegas
a este caminho longo e luminoso
mas que também se faz áspero e duro,
onde as nossas origens se abraçaram
dissolvendo-se em paz as diferenças,
engendradas na vida pela força
feroz com que desune o mundo os homens
que feitos foram para cantar juntos
porque só juntos saberão chegar
para a festa de amor que se prepara.
(...)
O tempo é de cuidados, companheiro.
É tempo sobretudo de vigília.
O inimigo está solto e se disfarça,
mas como usa botinas fica fácil
distinguir-lhe o tacão grosso e lustroso
que pisa as forças claras da verdade
e esmaga os verdes que dão vida ao chão.
O tempo é de mentira. Não convém
deixar livre o menino da esmeralda.
Melhor é protegê-lo da violência
que amarra a liberdade em pleno vôo.
A sombra já desceu, e muitas fauces
famintas se escancaram farejando.
Cuidado, companheiro, esconde a rosa,
espanta a mariposa colorida,
é perigosa esta canção de amor.
Cada um no seu lugar, na sua vez,
não descuidar na espreita do inimigo,
que não dorme jamais e é cheio de olhos.
E derramar a luz, no instante certo,
sobre a garra soturna do seu rosto.
É uma espera que dói, mas o que vale
é ter o coração por cidadela,
acender uma tocha em cada metro
de terra conquistado e trabalhar
melhor, para que o chão floresça mais
e o trigo erga bem alto o seu pendão
para a festa de amor, larga e geral,
onde a fome afinal não vai dançar,
porque não comerão somente eleitos,
porque são todos os que comerão.
É por isso que estamos todos juntos:
a nossa força tem o sortilégio
da seiva torrencial da primavera,
e o nosso amor palpita como os ímpetos
das águas amazônicas profundas.
É cantar, companheiro, e repartir
o que é preciso ser do amor geral.
Ninguém será sozinho nunca mais,
nem na solidão, nem no poder.
Sempre contigo irei, e é quando canto
que te defendo, e deito em tua lâmpada
um azeite que dura a treva inteira
nesses tempos de cinza em que a vigília,
espada em flama erguida como a rosa,
só poderá cessar quando outra vez,
envergonhada, regressar a aurora,
que vai lavar de luz o chão amado,
e seremos de novo e simplesmente
meninos repartindo as esmeraldas.
Hilda Hist - Dez chamamentos ao amigo
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1. évad 30. rész
Se te pareço noturna e imperfeita
Olha-me de novo.
Porque esta noite
Olhei-me a mim, como se tu me olhasses.
E era como se a água
Desejasse
Escapar de sua casa que é o rio
E deslizando apenas, nem tocar a margem.
Te olhei. E há um tempo
Entendo que sou terra. Há tanto tempo
Espero
Que o teu corpo de água mais fraterno
Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta
Olha-me de novo. Com menos altivez.
E mais atento.
Lya Luft
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1. évad 29. rész
Se te pareço ausente, não creias:
hora a hora minha dor agarra-se aos teus braços,
hora a hora meu desejo revolve teus escombros,
e escorrem dos meus olhos mais promessas.
Não acredites nesse breve sono;
não dês valor maior ao meu silêncio;
e se leres recados numa folha branca,
Não creias também: é preciso encostar
teus lábios nos meus lábios para ouvir.
Nem acredites se pensas que te falo:
palavras
são meu jeito mais secreto de calar.
Rupi Kaur
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1. évad 28. rész
meu deus
não espera dentro da igreja
ou na escadaria do templo
meu deus
é o fôlego da refugiada que corre
é a barriga da criança com fome
é o batimento no peito do protesto
meu deus
não descansa entre as páginas
escritas por homens sábios
meu deus
mora entre as coxas suadas
das mulheres vendidas por dinheiro
foi visto pela última vez lavando os pés de um mendigo
meu deus
não é tão distante
quanto eles às vezes dizem
meu deus pulsa dentro da gente infinitamente
Passagem - Marcella Tavares Saraceni
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1. évad 27. rész
tá tudo bem se você achar que agora ainda não é a hora
eu só queria que você lembrasse que as coisas passam
que as horas passam
sejam contadas através do calendário gregoriano
ou pelo tempo que permanecemos nos encarando sem piscar
os dias marés as dores e a graça passam também
as histórias passam as carreatas com políticos falidos passam
a moda a idéia a escada rolante
essa vontade de nos engolirmos
o calor o arrepio esse momento de contemplação de cada marca do rosto
memórias passam certas mágoas rancores e amores passam
esse ímpeto de jogar meu corpo no chão para você não passar
para você se jogar comigo em mim também passa
se você continuar acreditando que o destino tem mãos infinitas
onde se pode jogar tudo nelas
se você não perceber que seguro na extremidade do instante
e estico estico estico de modo que ele dure até você notar
se não sentir que teu corpo grita de alegria quando vê o meu
e tua mente rebelde se afasta com a convicção de que sabe o certo
se nada disso lhe soprar que podemos viver o vento fresco da primavera
sem pensar no calor do verão que nos acorda
abro todas as janelas e portas
te arranco de cada pedaço de mim
libero as estradas do tempo para que você passe
pode ser que eu demore
mais cedo ou tarde
passarei também //// @sementeviva
Da calma e do silêncio - Conceição Evaristo
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1. évad 26. rész
Quando eu morder
a palavra,
por favor,
não me apressem,
quero mascar,
rasgar entre os dentes,
a pele, os ossos, o tutano
do verbo,
para assim versejar
o âmago das coisas.
Quando meu olhar
se perder no nada,
por favor,
não me despertem,
quero reter,
no adentro da íris,
a menor sombra,
do ínfimo movimento.
Quando meus pés
abrandarem na marcha,
por favor,
não me forcem.
Caminhar para quê?
Deixem-me quedar,
deixem-me quieta,
na aparente inércia.
Nem todo viandante
anda estradas,
há mundos submersos,
que só o silêncio
da poesia penetra.
A terra é nossa - Patativa do Assaré
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1. évad 25. rész
A terra é um bem comum
Que pertence a cada um.
Com o seu poder além,
Deus fez a grande Natura
Mas não passou escritura
Da terra para ninguém.
Se a terra foi Deus quem fez,
Se é obra da criação,
Deve cada camponês
Ter uma faixa de chão.
Quando um agregado solta
O seu grito de revolta,
Tem razão de reclamar.
Não há maior padecer
Do que um camponês viver
Sem terra pra trabalhar.
O grande latifundiário,
Egoísta e usurário,
Da terra toda se apossa
Causando crises fatais
Porém nas leis naturais
Sabemos que a terra é nossa.
Sem título - Stela do Patrocínio
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1. évad 24. rész
eu era gases puro, ar, espaço vazio, tempo
eu era ar, espaço vazio, tempo
e gazes puro, assim, ó, espaço vazio, ó
eu não tinha formação
não tinha formatura
não tinha onde fazer cabeça
fazer braço, fazer corpo
fazer orelha, fazer nariz
fazer céu da boca, fazer falatório
fazer músculo, fazer dente
eu não tinha onde fazer nada dessas coisas
fazer cabeça, pensar em alguma coisa
ser útil, inteligente, ser raciocínio
não tinha onde tirar nada disso
eu era espaço vazio puro
E então, o que quereis? - Vladimir Maiakóvski
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1. évad 23. rész
Fiz ranger as folhas de jornal
abrindo-lhes as pálpebras piscantes.
E logo
de cada fronteira distante
subiu um cheiro de pólvora
perseguindo-me até em casa.
Nestes últimos vinte anos
nada de novo há
no rugir das tempestades.
Não estamos alegres,
é certo,
mas também por que razão
haveríamos de ficar tristes?
Espelho - Marcella Saraceni
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1. évad 22. rész
O espelho me mostra uma imagem que construo
Dessa carcaça que peguei emprestada
Vou devolver com a etiqueta de frágil rasgada
E cheia de marcas
Não vieram instruções na embalagem
Investigo e uso à vontade
Antes que seja tarde
O que o espelho não mostra
As vezes consigo ver
As vezes não
As vezes veem
As vezes criam
As vezes some
O que o espelho não mostra
Eu sinto
Está aí dentro dessa carcaça
Assim como em qualquer desgraça
E numa garça
Distante
Que faz como tudo o que é real
- Passa
Por que sou levada a escrever? - Glória Anzaldua
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1. évad 21. rész
Gloria Anzaldua em “Falando em línguas: uma carta para mulheres escritoras do terceiro mundo”
“(...) Por que sou levada a escrever? Porque a escrita me salva da complacência que me amedronta. Porque não tenho escolha. Porque devo manter vivo o espírito de minha revolta e a mim mesma também. Porque o mundo que crio na escrita compensa o que o mundo real não me dá. No escrever coloco ordem no mundo, coloco nele uma alça para poder segurá-lo. Escrevo porque a vida não aplaca meus apetites e minha fome. Escrevo para registrar o que os outros apagam quando falo, para reescrever as histórias mal escritas sobre mim, sobre você. Para me tornar mais íntima comigo mesma e consigo. Para me descobrir, preservar-me, construir-me, alcançar autonomia. Para desfazer os mitos de que sou uma profetisa louca ou uma pobre alma sofredora. Para me convencer de que tenho valor e que o que tenho para dizer não é um monte de merda. Para mostrar que eu posso e que eu escreverei, sem me importar com as advertências contrárias. Escreverei sobre o não dito, sem me importar com o suspiro de ultraje do censor e da audiência. Finalmente, escrevo porque tenho medo de escrever, mas tenho um medo maior de não escrever.”
Nuvens - Wisława Szymborska
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1. évad 20. rész
Para descrever as nuvens
muito teria de apressar-me,
pois numa fracção de segundo
deixam de ser estas e começam a ser outras.
É sua propriedade
não se repetir
nas formas, tonalidades, poses e configurações.
Sem o peso de qualquer lembrança,
pairam sem dificuldade sobre os factos.
Mas nem testemunha-los podem,
pois logo se dissipam em todas as direcções.
Comparada com as nuvens,
a vida afigura-se firme,
quase duradoura, eterna.
Perante as nuvens
até uma pedra parece nossa irmã,
na qual se confia,
mas elas, enfim, umas levianas primas afastadas.
As pessoas que existam, caso queiram,
e depois morram uma por uma,
as nuvens não têm nada a ver com
coisas
tão estranhas.
Sobre toda a tua vida
e sobre a minha, ainda não toda,
desfilam com pompa, como desfilavam.
Não têm obrigação de morrer connosco.
Não precisam do nosso olhar para navegar.
Recorte do conto: Para uma avenca partindo - Caio Fernando Abreu
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1. évad 19. rész
Eu queria te dizer uma porção de coisas, de uma porção de noites, ou tardes, ou manhãs, não importa a cor, é, a cor, o tempo é só uma questão de cor não é? Pois isso não importa, eu queria era te dizer dessas vezes em que eu te deixava e depois saía sozinho, pensando numa porção de coisas que eu não ia te dizer, porque existem coisas terríveis que precisam ser ditas, não faça essa cara de espanto, elas são realmente terríveis, eu me perguntava se você era capaz de ouvir, se você teria, não sei, disponibilidade suficiente para ouvir, sim, era preciso estar disponível para ouví-las, disponível em relação a quê? Não sei, não me interrompa agora que estou quase conseguindo, disponível só, não é uma palavra bonita? Sabe, eu me perguntava até que ponto você era aquilo que eu via em você ou apenas aquilo que eu queria ver em você, eu queria saber até que ponto você não era apenas uma projeção daquilo que eu sentia, e, se era assim, até quando eu conseguiria ver em você todas essas coisas que me fascinavam e que no fundo, sempre no fundo, talvez nem fossem suas, mas minhas, e pensava que amar era só conseguir ver, e desamar era não mais conseguir ver, entende?
Não te rendas - Mário Benedetti (poema traduzido)
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1. évad 18. rész
Não te rendas, ainda estás a tempo
de alcançar e começar de novo,
aceitar as tuas sombras
enterrar os teus medos,
largar o lastro,
retomar o voo.
Não te rendas que a vida é isso,
continuar a viagem,
perseguir os teus sonhos,
destravar os tempos,
arrumar os escombros,
e destapar o céu.
Não te rendas, por favor, não cedas,
ainda que o frio queime,
ainda que o medo morda,
ainda que o sol se esconda,
e se cale o vento:
ainda há fogo na tua alma
ainda existe vida nos teus sonhos.
Porque a vida é tua, e teu é também o desejo,
porque o quiseste e eu te amo,
porque existe o vinho e o amor,
porque não existem feridas que o tempo não cure.
Abrir as portas,
tirar os ferrolhos,
abandonar as muralhas que te protegeram,
viver a vida e aceitar o desafio,
recuperar o riso,
ensaiar um canto,
baixar a guarda e estender as mãos,
abrir as asas
e tentar de novo
celebrar a vida e relançar-se no infinito.
Não te rendas, por favor, não cedas:
mesmo que o frio queime,
mesmo que o medo morda,
mesmo que o sol se ponha e se cale o vento,
ainda há fogo na tua alma,
ainda existe vida nos teus sonhos.
Porque cada dia é um novo início,
porque esta é a hora e o melhor momento.
Porque não estás só, porque eu te amo.
Sem título - Eileen Myles
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1. évad 17. rész
Sempre coloco minha buceta
no meio das árvores
como uma cachoeira
como uma porta de entrada para Deus
como um bando de pássaros.
Sempre coloco a buceta da minha amante
na crista
de uma onda
como uma bandeira
que posso
jurar
minha fidelidade.
Este é meu
país. Aqui,
quando estamos sozinhas,
em público.
A buceta da minha amante
é um distintivo
é um cassetete
é um capacete
é um punhado
de flores
é uma cachoeira
é um rio
de sangue
é uma bíblia
é um furacão
é uma vidente.
A buceta da minha amante
é um grito de guerra
é uma reza
é almoço
é saúde
é feliz
está na tevê
tem senso de humor
tem uma carreira
tem um copo de café
vai para o trabalho
medita
está sempre só
conhece meu rosto
conhece minha língua
conhece minhas mãos
é uma alarmista
tem maus modos
conhece sua mente.
Sempre coloco
minha buceta no meio
das árvores
como uma cachoeira
uma peça de joia
que uso no meu peito
como um distintivo
aqui na América
para que minha amante & eu
possamos estar seguras.
Nós nas bolhas - Carla Diacov
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1. évad 16. rész
Como um bebê
Eu haveria de passar pelos dias
Sentir cócegas nos ossos
Não enxergar a tradução dos letreiros
Subir as escadas pelos olhos dos outros
Engatinhando para apanhar o frasco de aspirinas
Os ansiolíticos
Vomitar no álbum de lembranças que não são minhas
Esperar que cresçam as unhas nas pontas dos dedos
E arranhar as gengivas
Brincar com as pernas no ar
Dar nós nas bolhas de baba
Morder o dedo do médico
Não enxergar a tradução no que dizem
Vomitar no teu ombro
Me cagar de dez em dez minutos
Chorar só um pouquinho
Engolir moedas
Não enxergar a tradução no que cantam e dançam
Ter os sentimentos cercados de barras
E tomar um bom trago de vodca barata no fim da manhã
Antes da papinha cheia de saliva da mamãe
Como um poeta
Eu haveria de passar pelos dias
A arte de perder - Elizabeth Bishop
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1. évad 16. rész
A arte de perder não é nenhum mistério;
Tantas coisas contêm em si o acidente
De perdê-las, que perder não é nada sério.
Perca um pouquinho a cada dia. Aceite, austero,
A chave perdida, a hora gasta bestamente.
A arte de perder não é nenhum mistério.
Depois perca mais rápido, com mais critério:
Lugares, nomes, a escala subseqüente
Da viagem não feita. Nada disso é sério.
Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero
Lembrar a perda de três casas excelentes.
A arte de perder não é nenhum mistério.
Perdi duas cidades lindas. E um império
Que era meu, dois rios, e mais um continente.
Tenho saudade deles. Mas não é nada sério.
- Mesmo perder você (a voz, o riso etéreo
que eu amo) não muda nada. Pois é evidente
que a arte de perder não chega a ser mistério
por muito que pareça (Escreve!) muito sério.
Eutopia - Marcella T Saraceni
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1. évad 15. rész
Eu queria, algum dia, habitar o espaço onde minhas memórias estão guardadas
Eu queria entrar nesse lugar onde minhas experiências dançam juntas e pairam no ar
Queria acessar a imensa biblioteca dos livro que li
Olhar a tela onde passa o compilado de tudo que vi
Eu queria enterrar meus pés na mistura dos solos em que já pisei
Mergulhar no oceano das águas que penetrei
E nos olhares em que me afoguei
Eu queria estar no infinito dos abraços que já troquei
E acessar o arquivo da verdade que rasguei
Eu queria tocar o rosto formado por todos que amei
E a poesia criada pelas palavras que vomitei
Eu queria reaprender o tanto que esqueci
Descobrir o aroma dos cheiros que senti
E em uma dimensão sem tempo
renascer no que já vivi
Eu queria encontrar onde todos os caminhos se convergiram
E acordar os sonhos que adormeceram
Estar na papila degustativa das primeiras refeições
E pairar no vento sublime guiado pelas canções
Eu queria navegar
À luz do meio dia
Rumo à cidade vazia
Da Eutopia // Marcella Saraceni @sementeviva
Fagulha- Ana Cristina César
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1. évad 14. rész
Abri curiosa
o céu.
Assim, afastando de leve as cortinas.
Eu queria entrar,
coração ante coração,
inteiriça
ou pelo menos mover-me um pouco,
com aquela parcimônia que caracterizava
as agitações me chamando
Eu queria até mesmo
saber ver,
e num movimento redondo
como as ondas
que me circundavam, invisíveis,
abraçar com as retinas
cada pedacinho de matéria viva.
Eu queria
(só)
perceber o invislumbrável
no levíssimo que sobrevoava.
Eu queria
apanhar uma braçada
do infinito em luz que a mim se misturava.
Eu queria
captar o impercebido
nos momentos mínimos do espaço
nu e cheio
Eu queria
ao menos manter descerradas as cortinas
na impossibilidade de tangê-las
Eu não sabia
que virar pelo avesso
era uma experiência mortal.
Fêmea fênix - Conceição Evaristo
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1. évad 13. rész
Navego-me eu–mulher e não temo,
sei da falsa maciez das águas
e quando o receio
me busca, não temo o medo,
sei que posso me deslizar
nas pedras e me sair ilesa,
com o corpo marcado pelo olor
da lama.
Abraso-me eu-mulher e não temo,
sei do inebriante calor da queima
e quando o temor
me visita, não temo o receio,
sei que posso me lançar ao fogo
e da fogueira me sair inunda,
com o corpo ameigado pelo odor
da chama.
Deserto-me eu-mulher e não temo,
sei do cativante vazio da miragem,
e quando o pavor
em mim aloja, não temo o medo,
sei que posso me fundir ao só,
e em solo ressurgir inteira
com o corpo banhado pelo suor
da faina.
Vivifico-me eu-mulher e teimo,
na vital carícia de meu cio,
na cálida coragem de meu corpo,
no infindo laço da vida,
que jaz em mim
e renasce flor fecunda.
Vivifico-me eu-mulher.
Fêmea. Fênix. Eu fecundo.
O Operário em construção - Vinícius de Moraes
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1. évad 12. rész
Poema escrito em 1959 retratando o processo de construção da consciência social do trabalhador.
O que se odeia no Índio - Reynaldo Jardim
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1. évad 12. rész
O que se odeia no índio
não é apenas o ocupado espaço.
O que se odeia no índio
é o puro animal que nele habita,
é a sua cor em bronze arquitetada.
A precisão com que a flecha voa
e abate a caça; o gesto largo
com que abraça o rio; o gosto de
afagar as penas e tecer o cocar;
O que se odeia no índio
é o andar sem ruído; a presteza
segura de cada movimento; a eugenia
nítida do corpo erguido
contra a luz do sol.
O que se odeia no índio é o sol.
A árvore se odeia no índio.
O rio se odeia no índio.
O corpo a corpo com a vida
se odeia no índio.
O que se odeia no índio
é a permanência da infância.
E a liberdade aberta
se odeia no índio.
Elegia número 11 - Mário Quintana
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1. évad 11. rész
Não, não é uma série de pontos de exclamação
- é uma avenida de álamos...
E o que, e para quem, clamariam então?!
Deserta está a cidade.
Todas as avenidas, todas as ruas, todas as estradas, atônitas
se perguntam se vêm ou se vão...
Em nada lhes poderiam servir esses postes de quilometragem:
estão apenas desenhados, como num mapa.
Ah, se houvesse uns passos, ainda que fossem solitários...
Se houvesse alguém andando sozinho... e bastava! São os passos
- são os passos que fazem os caminhos.
Deserta está a cidade.
Se houvesse alguém andando sozinho
- para ele se acenderiam então, como um olhar, todas as cores!
Porque a cidade está cega, também.
O que não é visto por ninguém
não sabe a cor do aspecto que tem.
A cidade está cega e parada a descor de um morto.
Porque tudo aquilo que jamais é visto
- não existe...
Mário Quintana
O menino que carregava água na peneira - Manoel de Barros
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1. évad 9. rész
Tenho um livro sobre águas e meninos.
Gostei mais de um menino que carregava água na peneira.
A mãe disse que carregar água na peneira era o mesmo que roubar um vento
e sair correndo com ele para mostrar aos irmãos.
A mãe disse que era o mesmo que catar espinhos na água
O mesmo que criar peixes no bolso.
O menino era ligado em despropósitos.
Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos.
A mãe reparou que o menino gostava mais do vazio do que do cheio.
Falava que os vazios são maiores e atéinfinitos.
Com o tempo aquele menino que era cismado e esquisito
porque gostava de carregar água na peneira
Com o tempo descobriu que escrever seria o mesmo
que carregar água na peneira.
No escrever o menino viu que era capaz de ser
noviça, monge ou mendigo ao mesmo tempo.
O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.
Foi capaz de interromper o vôo de um pássaro botando ponto final na frase.
Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.
O menino fazia prodígios.
Atéfez uma pedra dar flor!
A mãe reparava o menino com ternura.
A mãe falou: Meu filho vocêvai ser poeta.
Vocêvai carregar água na peneira a vida toda.
Vocêvai encher os vazios com as suas peraltagens
e algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos.
Ode ao instante - Marcella Saraceni / composição musical: Alan Tartari
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1. évad 8. rész
Se te olho no fundos olhos
É porque estou aqui
Em alma, corpo, espírito e vontade
Entrego minha presença a tua
Nua, e vazia de expectativas
Não precisas permanecer teu olhar no meu se não sentir
Eu sei que ele as vezes é forte demais
Mas não me peça pra ser menos
Não me diga que poderia ser mais
Não compare nossos corpos
Não saia correndo
Ou morra de medo do agora
Tudo é só esse momento
É leve, profundo e fugaz
Por favor, não pegue no celular - Marcella T Saraceni - @sementeviva
Se eu fosse eu - Clarice Lispector
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1. évad 7. rész
Quando eu não sei onde guardei um papel importante e a procura revela-se inútil, pergunto-me: se eu fosse eu e tivesse um papel importante para guardar, que lugar escolheria? Às vezes dá certo. Mas muitas vezes fico tão pressionada pela frase "se eu fosse eu", que a procura do papel se torna secundária, e começo a pensar, diria melhor SENTIR.
E não me sinto bem. Experimente: se você fosse você, como seria e o que faria? Logo de início se sente um constrangimento: a mentira em que nos acomodamos acabou de ser movida do lugar onde se acomodara. No entanto já li biografias de pessoas que de repente passavam a ser elas mesmas e mudavam inteiramente de vida.
Acho que se eu fosse realmente eu, os amigos não me cumprimentariam na rua, porque até minha fisionomia teria mudado. Como? Não sei.
Metade das coisas que eu faria se eu fosse eu, não posso contar. Acho por exemplo, que por um certo motivo eu terminaria presa na cadeia. E se eu fosse eu daria tudo que é meu e confiaria o futuro ao futuro.
"Se eu fosse eu" parece representar o nosso maior perigo de viver, parece a entrada nova no desconhecido.
No entanto tenho a intuição de que, passadas as primeiras chamadas loucuras da festa que seria, teriamos enfim a experiência do mundo. Bem sei, experimentaríamos emfim em pleno a dor do mundo. E a nossa dor aquela que aprendemos a não sentir. Mas também seríamos por vezes tomados de um êxtase de alegria pura e legítima que mal posso adivinhar. Não, acho que já estou de algum modo adivinhando, porque me senti sorrindo e também senti uma espécie de pudor que se tem diante do que é grande demais
O Poema do Semelhante - Elisa Lucinda
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1. évad 6. rész
O Deus da parecença
que nos costura em igualdade
que nos papel-carboniza
em sentimento
que nos pluraliza
que nos banaliza
por baixo e por dentro,
foi este Deus que deu
destino aos meus versos,
Foi Ele quem arrancou deles
a roupa de indivíduo
e deu-lhes outra de indivíduo
ainda maior, embora mais justa.
Me assusta e acalma
ser portadora de várias almas
de um só som comum eco
ser reverberante
espelho, semelhante
ser a boca
ser a dona da palavra sem dono
de tanto dono que tem.
Esse Deus sabe que alguém é apenas
o singular da palavra multidão
Eh mundão
todo mundo beija
todo mundo almeja
todo mundo deseja
todo mundo chora
alguns por dentro
alguns por fora
alguém sempre chega
alguém sempre demora.
O Deus que cuida do
não-desperdício dos poetas
deu-me essa festa
de similitude
bateu-me no peito do meu amigo
encostou-me a ele
em atitude de verso beijo e umbigos,
extirpou de mim o exclusivo:
a solidão da bravura
a solidão do medo
a solidão da usura
a solidão da coragem
a solidão da bobagem
a solidão da virtude
a solidão da viagem
a solidão do erro
a solidão do sexo
a solidão do zelo
a solidão do nexo.
O Deus soprador de carmas
deu de eu ser parecida
Aparecida
santa
puta
criança
deu de me fazer
diferente
pra que eu provasse
da alegria
de ser igual a toda gente
Esse Deus deu coletivo
ao meu particular
sem eu nem reclamar
Foi Ele, o Deus da par-essência
O Deus da essência par.
Não fosse a inteligência
da semelhança
seria só o meu amor
seria só a minha dor
bobinha e sem bonança
seria sozinha minha esperança
Madrugada Camponesa - Thiago de Mello
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1. évad 5. rész
Madrugada camponesa
faz escuro ainda no chão
mas é preciso plantar.
A noite já foi mais noite,
a manhã já vai chegar.
Não vale mais a canção
feita de medo e arremedo
para enganar a solidão.
Agora vale a verdade
cantada simples e sempre,
agora vale a alegria
que se constrói dia a dia
feita de canto e de pão.
Breve há de ser (sinto no ar)
tempo de trigo maduro.
Vai ser tempo de ceifar.
Já se levantam prodígios,
chuva azul no milharal,
estala em flor o feijão,
um leite novo minando
no meu longe seringal.
Já é quase tempo de amor.
Colho um sol que arde no chão,
lavro a luz dentro da cana,
minha alma no seu pendão.
Madrugada camponesa.
Faz escuro (já nem tanto),
vale a pena trabalhar.
Faz escuro mas eu canto
porque amanhã vai chegar.
Cântico Negro - José Régio
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1. évad 4. rész
"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos(...)
E tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!
O Homem; As viagens - Carlos Drummond de Andrade
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1. évad 2. rész
O homem, bicho da terra tão pequeno
Chateia-se na terra
Lugar de muita miséria e pouca diversão,
Faz um foguete, uma cápsula, um módulo
Toca para a lua
Desce cauteloso na lua
Pisa na lua
Planta bandeirola na lua
Experimenta a lua
Coloniza a lua
Civiliza a lua
Humaniza a lua.
Lua humanizada: tão igual à terra.
O homem chateia-se na lua.
Vamos para marte - ordena a suas máquinas.
Elas obedecem, o homem desce em marte
Pisa em marte
Experimenta
Coloniza
Civiliza
Humaniza marte com engenho e arte.
Marte humanizado, que lugar quadrado.
Vamos a outra parte?
Claro - diz o engenho
Sofisticado e dócil.
Vamos a vênus.
O homem põe o pé em vênus,
Vê o visto - é isto?
Idem
Idem
Idem.
O homem funde a cuca se não for a júpiter
Proclamar justiça junto com injustiça
Repetir a fossa
Repetir o inquieto
Repetitório.
Outros planetas restam para outras colônias.
O espaço todo vira terra-a-terra.
O homem chega ao sol ou dá uma volta
Só para tever?
Não-vê que ele inventa
Roupa insiderável de viver no sol.
Põe o pé e:
Mas que chato é o sol, falso touro
Espanhol domado.
Restam outros sistemas fora
Do solar a col-
Onizar.
Ao acabarem todos
Só resta ao homem
(estará equipado?)
A dificílima dangerosíssima viagem
De si a si mesmo:
Pôr o pé no chão
Do seu coração
Experimentar
Colonizar
Civilizar
Humanizar
O homem
Descobrindo em suas próprias inexploradas entranhas
A perene, insuspeitada alegria
De con-viver.
Instruções para esquivar o mau tempo
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1. évad 1. rész
Em primeiro lugar, não se desespere e em caso de agitação não siga as regras que o furacão quererá lhe impor.
Refugie-se em casa e feche as trancas quando todos os seus estiverem a salvo.
Compartilhe o mate e a conversa com os companheiros, os beijos furtivos e as noites clandestinas com quem lhe assegure ternura.
Não deixe que a estupidez se imponha.
Defenda-se.
Contra a estética, ética.
Esteja sempre atento.
Não lhes bastará empobrecê-lo, e quererão subjugá-lo com sua própria tristeza.
Ria ostensivamente.
Tire sarro: a direita é mal comida.
Será imprescindível jantar juntos a cada dia até que a tormenta passe.
São coisas simples, mas nem por isso menos eficazes.
Diga para o lado bom dia, por favor e obrigado.
E tomar no cu quando o solicitem de cima.
Dê tudo o que tiver, mas nunca sozinho.
Eles sabem como emboscá-lo na solidão desprevenida de uma tarde.
Lembre que os artistas serão sempre nossos.
E o esquecimento será feroz com o bando de impostores que os acompanha.
Tudo vai ficar bem se você me ouvir.
Sobreviveremos novamente, estamos maduros.
Cuidemos dos garotos, que eles quererão podar.
Só é preciso se munir bem e não amesquinhar amabilidades.
Devemos ter à mão os poemas indispensáveis, o vinho tinto e o violão.
Sorrir aos nossos pais como vacina contra a angústia diária.
Ser piedosos com os amigos.
Não confundir os ingênuos com os traidores.
E, mesmo com estes, ter o perdão fácil quando voltarem com as ilusões acabadas.
Aqui ninguém sobra.
E, isto sim, ser perseverantes e tenazes, escrever religiosamente todos os dias, todas as tardes, todas as noites.
Ainda sustentados em teimosias se a fé desmoronar.
Nisso, não haverá trégua para ninguém.
A poesia dói nesses filhos da puta. - Paco Urondo